Por Claudia Costa
A psicóloga paulista Enia Alberto trabalha há 18 anos com crianças e adolescentes com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Ela é especialista no atendimento a crianças com comportamentos desajustados graves, como aquelas que praticam agressões severas, agressões contra outros, destruição de propriedade e tenham distúrbios alimentares.
Enia formou-se psicóloga pela FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas), de São Paulo, possui mestrado em Educação Especial pela Salem State University em Salem, Massachusetts, e BCBA (Board Certified Behavior Analyst) pela Endicott College em Boston, Massachusetts.
Ela explica que a paixão pelo trabalho com crianças com Transtorno do Espectro Autista começou em uma escola especializada nos EUA. Essa escola atende pacientes de 2 a 21 anos que têm comportamentos severos e precisam de serviços especializados ou muito intensos, o que a escola pública não conseguiria oferecer. Por seu conhecimento e atuação profissional, Enia foi convidada a prestar serviços para o MassHealth, que é o plano de saúde público do governo americano. O programa oferece avaliação e tratamento em casa. A ideia não é somente ajudar a criança a diminuir comportamentos inadequados, mas também dar suporte e treinamento para a família que, desta maneira, aprende estratégias para lidar com a criança no dia a dia, não precisando do suporte de longo prazo.
Enia Alberto assumiu na Austrália a diretoria clínica e educacional de um centro de intervenção inicial para crianças de 2 a 6 anos. Nesta entrevista exclusiva ao Portal Ideia Delas, a especialista explica como é realizado o atendimento aos pacientes com TEA.
O diagnóstico/tratamento do autismo é multidisciplinar?
Nos EUA, assim como na Austrália, o diagnóstico é realizado por um médico, geralmente neurologista ou neuropsiquiatra. Existem ferramentas usadas por alguns profissionais (psicólogos, terapeutas, pediatras) que podem indicar que a criança esteja no espectro. Quando existem indicativos, o profissional geralmente vai encaminhar para o médico que dará o diagnóstico final. O tratamento envolve médico, BCBA (Board Certified Behavior Analyst), fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, professores e pais.
Existe algum exame físico que seja definitivo para o diagnóstico do autismo?
Infelizmente, ainda não existem exames físicos. O diagnóstico é realizado por meio de testes psicológicos, observação do comportamento e desenvolvimento da criança e geralmente ocorre entre 12 e 36 meses.
Quais as principais características de um autista?
A criança com autismo apresenta dificuldades com interação social/comunicação e comportamentos ou interesses repetitivos ou limitados. Obviamente que cada uma dessas áreas engloba uma série de comportamentos e pode se apresentar de maneira diferente de uma criança para outra. Cada criança é única e deve ser tratada de acordo com sua individualidade.
Existem níveis de autismo? E como eles são classificados?
Sim, a Associação Americana de Psiquiatria orienta que o diagnóstico seja feito em três níveis, que indicam a “quantidade de suporte” que a criança precisa. No nível 1, a criança precisa de menos suporte e no nível 3 precisa de uma quantidade razoável de suporte.
Um autista consegue ter algum grau de autonomia, como ir e vir de ônibus de algum lugar sozinho?
Com certeza! Trabalhei com jovens que pegam ônibus, vão para a escola integrada, trabalham, namoram e fazem quase tudo que um jovem neurotípico faz. Obviamente que uma criança com nível 3, que precisa de mais suporte, talvez não consiga ir e vir com tanta independência, mas isso não significa que não possa aprender outras coisas. Toda criança aprende, a gente só precisa saber ensinar.
Qual a maior dificuldade da família em lidar com um filho autista?
Acredito que a maior dificuldade das famílias é a falta de apoio. Falta de apoio dos parentes, amigos e da sociedade que muitas vezes isola a criança (e a família) por falta de conhecimento.
A dificuldade de interação social e a comunicação são os principais sintomas. Como é o seu trabalho para estabelecer essa comunicação com ele?
Uma ideia errada que as pessoas têm é que a criança autista não se comunica. Toda criança se comunica, algumas usam palavras. Crianças autistas que sejam completamente não verbais geralmente se comunicam de outras formas, algumas choram, outras gritam, outras batem, outras ficam quietas. A beleza do meu trabalho é identificar como elas se comunicam e ensiná-las a fazê-lo de uma forma mais eficiente para que todos entendam.
O autista tem consciência da sua dificuldade de estabelecer relacionamentos ou comunicação?
Alguns verbalizam essa dificuldade. É preciso lembrar que o espectro de autismo faz com que existam crianças com o mesmo diagnóstico e características completamente diferentes. Eu tenho pacientes que podem entrar em uma conversa sem que as pessoas necessariamente notem que ele seja autista. Esse jovem vai identificar essa dificuldade. E, do outro lado do espectro, existem os que não necessariamente queiram se engajar em interações sociais ou notem essa dificuldade.
Como é o tratamento oferecido aos autistas nos EUA? Na sua opinião, qual é o avanço ou diferencial que os americanos têm no atendimento de um autista?
Nos EUA, a qualidade de atendimento recebido depende do lugar em que a família mora. Cada Estado tem a sua própria regulamentação. Nos Estados mais ricos, como Massachusetts, os planos de saúde são obrigados a cobrir todo o tratamento ABA, que é hoje reconhecido no mundo como a metodologia mais eficaz para tratamento com autistas. O plano só paga se o tratamento for supervisionado por profissional qualificado (BCBA). O suporte escolar é primordial, os professores geralmente têm formação em Educação Especial, a criança tem fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional na escola, além de um BCBA. Existe um ditado que diz que “é preciso uma vila para educar uma criança”, nesse sentido o tratamento é feito de maneira multidisciplinar.
Os americanos se unem em associações para trocar experiências e também para buscar maior apoio do governo para o tratamento e outras ações de inclusão?
Com certeza. Todo avanço conseguido nos EUA se deve ao trabalho e à organização dos pais, cobrando direitos e suporte do governo.
As famílias também são cuidadas e orientadas em como lidar com o autista? É um paciente que demandará acompanhamento a vida toda?
Infelizmente o autismo não tem cura, mas a criança deve ser educada e receber suporte para ter uma vida mais próxima do “normal” possível. Comportamentos difíceis podem ser reduzidos ou eliminados. Nos EUA, a família recebe suporte em casa por um período e, quando a criança atinge as metas, o suporte em casa é encerrado. Há casos em que a criança volta porque novos desafios surgiram. Os problemas que a família tem com uma criança de 5 anos são diferentes dos que podem surgir quando o jovem tiver 15 anos.
Quais atividades que as crianças com TEA mais gostam de praticar ou participar?
Os interesses são pessoais e as crianças gostam de coisas diferentes.
Existe algum tipo de terapia que envolva animais no tratamento? Já li sobre uma criança que não aceitava ser tocada pela mãe, mas que conseguiu estabelecer contato físico e afetividade com um cachorro.
Tratamentos com animais foram muito populares anos atrás. Infelizmente, não há dados científicos sérios que provem que sejam eficazes como terapia. Nos EUA, geralmente não são indicados como tratamentos terapêuticos, porém como atividade recreativa. Animais são extremamente reforçadores para muitas crianças e podem ser incorporados como parte da terapia/tratamento, mas não como tratamento isolado.
Um autista consegue frequentar uma escola regularmente?
Sim. Com suporte correto, toda criança aprende.
Como as pessoas podem auxiliar um autista no seu dia a dia?
O principal é não julgar, não assumir que “o que funcionou com o A vai funcionar com o B”. Lembre-se que, antes de tudo, é uma criança, jovem, adolescente e depois vem o autismo. Tenha empatia com os pais. Os pais conhecem os filhos melhor do que qualquer um. Ofereça ajuda a eles, e respeite o que eles pedirem.
É possível a inclusão de um TEA na sociedade?
Sim, é totalmente possível. O importante é lembrar que inclusão não é um lugar e sim uma atitude. Incluir é dar suporte para as crianças e para os professores para que essa criança tenha sucesso, que se desenvolva e atinja o seu potencial, seja ele qual for. Inclusão não é simplesmente colocar a criança no meio da sala com crianças típicas, mas dar a ela as condições para que cresça. No meu ver, inclusão é olhar com amor e ver uma criança e não uma deficiência.
Agora você está trabalhando na Austrália, treinando profissionais que trabalham com autista. Qual o seu maior desafio?
O uso de metodologias sem comprovação científica ainda é muito grande na Austrália. O desafio é educar fonoaudiólogos, terapeutas e professores não só no tratamento clínico e educacional da criança com autismo, mas também desmistificar metodologias que, além de não terem comprovação científica de que sejam eficazes, possam causar prejuízos no futuro.
Qual a contribuição que a sociedade em geral pode dar para melhorar a vida de um autista e da sua família?
Acredito que seja a inclusão, no sentido mais profundo da palavra.
*** Contato da psicóloga dra. Enia Alberto: eniamf@gmail.com
Agradecimentos:
Fotos: arquivo pessoal de Gisele Zemuner
Revisão: Jackson Liasch (fone (43) 99944-4848 – e-mail: jackson.liasch@gmail.com
Gisele Zemuner diz
Admiração ,respeito e muita gratidão é o que sinto por Emia Alberto. Excelente matéria , acredito que ira ajudar muitas famílias e crianças com TEA .
Maria diz
Gostaria de saber se a criança com TEA que é inclusa, tem algum apoio individual?
Enia Alberto diz
Oi Maria,
Para que a inclusão seja bem sucedida a criança precisa receber suporte individual. Esse suporte deve ser feito de acordo com a necessidade de cada criança. Por exemplo” algumas crianças podem se beneficiar de um facilitador para acompanha- lá durante o dia, outras podem seguir a rotina com ajuda de suporte visual ( agenda com figuras por exemplo). Existem várias maneiras de dar apoio a essa criança, obviamente que algumas coisas são fáceis e podem ser feitas pelo professor ( exemplo: tempo a mais pra fazer a tarefa) e outras precisam de ajuda do governo ( exemplo: um facilitador ).
MARCIA Ríspoli diz
No livro de Andrew Solomon ,longe da arvore pais filhos e a busca da identidade, fica claro que as terapias para autistas funcionam de forma totalmente diferente para cada um deles e em muitos casos não apresentam resultados. Mas que só saberemos se tentarmos .Tenho um filho de 13 anos que faz aba desde os 2 aninhos e acho que uma afirmação categórica de que todos podem apresentar resultados muito temerária , quando estamos falando de uma sindrome onde o ganhador do premio Nobel Erick Kandel disse ” Se conseguirmos entender o autismo, entenderemos o cerebro” e infelizmente ainda nao entendemos o cérebro!
Claudia Costa diz
Leia as entrevistas que realizamos com duas terapeutas sobre o assunto. https://ideiadelas.com.br/especialistas-lancam-livro-para-auxiliar-profissionais-que-trabalham-com-pessoas-com-autismo/
https://ideiadelas.com.br/autismo-inclusao-e-olhar-com-amor-e-ver-uma-crianca-e-nao-uma-deficiencia/