Por Elisiê Peixoto
Quando criança, minha mãe preparava um licor de jabuticaba que tinha aprendido com a minha avó e que, por sua vez, tinha aprendido com a minha bisavó. Eu não tomava porque era pequena, mas aprendi a saboreá-lo depois de adulta. Porém, por toda a minha vida, o cheiro da jabuticaba esteve presente. E até hoje, só de falar, lembro-me da jarra de cristal com licor que ficava em cima do balcão da sala de jantar. Minha mãe fazia questão de servir para quem fosse em casa. Outra receita dela era o bolo inglês que ela preparava uma semana antes do Natal. Ela macerava as uvas-passas ao rum, depois de pronto embalava no papel-alumínio e só deixava “desembrulhar” na ceia. Até hoje o aroma do rum e o sabor da uva-passa estão cravados no meu paladar. E no meu coração.
Acredito que para isso dá-se o nome de “cozinha afetiva”. Ou, agora, mais conhecido como comfort food, um novo nicho do mercado gastronômico que está ganhando força e fazendo chefs buscarem essa nova alternativa de
cardápio. A cozinha afetiva faz algo sobrenatural que é trazer de volta sensações nostálgicas por meio do paladar. Alguns veteranos de reality shows, chefs conhecidos, gente que se sobressai nas cozinhas e até com livros de receitas assinados estão dando espaço para essa opção gastronômica que tem atraído vários adeptos. Nos grandes centros, desde as macarronadas de domingo em família até os pudins de leite condensado das avós estão como boas escolhas nos cardápios de restaurantes bacanas. O Ideia Delas conversou com alguns profissionais de diferentes áreas que têm algo em comum: lembram-se de receitas de mãe e avó e que estão presentes no dia a dia e até no negócio da família. Vamos conhecer essas histórias de boas lembranças?
Segredo de família
Laís Yastreboy Junqueira e Caio Rangel abriram a Bombocado – Delícias Artesanais, em abril de 2015, com um conceito muito similar à cozinha afetiva. Tudo lá é feito por eles, de uma forma muito cuidadosa e com receitas que levam ingredientes detalhadamente escolhidos e alguns que são segredos de família. O nome Bombocado tem uma razão de ser e quem revela é a própria Laís. “O bom-bocado é um docinho que fez parte da minha infância. Para quem não conhece, é um doce muito antigo, bem brasileiro, com forte influência portuguesa. Lembro-me da minha avó preparando com grande cuidado, pois é uma receita bastante trabalhosa. A receita do bom-bocado em nossa família é guardada em segredo, minha avó não passava a receita para ninguém, apenas para a família, e eu como neta acabei herdando. Como disse, o bom-bocado tem influência portuguesa, pois a receita leva ovos, além de queijo meia cura, coco e açúcar. De preparo lento e trabalhoso, o bom-bocado me faz lembrar dela, dizendo que não se podia comer muitos; acho que ela dizia isso pelo trabalho que dava na preparação (risos). Daí que deveria ser degustado e não apenas ‘comer por comer’. Ela só fazia esse doce em datas especiais e eram oferecidos com carinho para as pessoas. Assim surgiu a ideia de dar o nome à nossa doceria de Bombocado – Delícias Artesanais. O cardápio é elaborado semanalmente com muito cuidado, para sempre oferecermos aos nossos clientes novas experiências. Eu e o Caio nos dedicamos para passar, por meio dos nossos doces, o amor pela gastronomia”, conclui.
O delicioso cabrito de Natal
Residindo atualmente em Nova York, nos Estados Unidos, a toxicologista e pesquisadora Mônica Bastos, que já viajou por vários lugares do mundo e que frequentemente experimenta pratos com sabores diferentes, afirma que nada se compara ao “Cabrito de Natal” que seu pai Vitor preparou durante anos para a família. Após o seu falecimento, continuou sendo preparado por ela e agora pelo seu filho João Vitor. “Sinto uma nostalgia quando me recordo do cheiro de assado maravilhoso que tinha nas casas das minhas duas avós. Mas a época de Natal sempre foi especial na minha vida e está guardada na memória. Lembro-me que em primeiro lugar a preocupação da família era o alimento espiritual para comemorar o nascimento de Jesus. Acredito que ninguém da nossa família despedia-se da ceia de Natal indiferente, porque a reunião familiar era algo que marcava alegremente a nossa vida. Meu pai preparava um cabrito à portuguesa, receita do meu avô, e a considero insuperável. Todo ano era um ritual. Um dia antes da ceia meu pai colocava o avental e assumia a função de preparar o cabrito. As crianças ficavam rodeando o avô e o cabrito e sempre era uma festa! Como poderia me esquecer daquele aroma delicioso invadindo a casa no dia 24 de dezembro? O cabrito era assado lentamente, meu pai passava o dia inteiro virando a carne para não ressecar e finalmente deixá-lo saboroso, homogêneo e suculento. Depois do falecimento do meu pai, assumi essa função e aprendi a preparar o cabrito. Hoje, o meu filho João Vitor já aprendeu a receita e faz muitíssimo bem. E tem um detalhe, meu pai preparava um dia antes o molho numa bacia enorme, que levava vinho seco, azeite português, colorau, sal, alho, pimenta-do-reino, muitas folhas de louro e bacon em quadradinhos. Recordo-me dele furando o cabrito, colocando pedaços de bacon e alho e deixando marinar de um dia para o outro.”
Mônica acrescenta que a ceia ficava completa com a sobremesa: um bolo de nozes, receita da avó materna. “Nós adorávamos, era um bolo de nozes preparado à moda antiga, não se batia na batedeira, tudo feito à mão, sabor insuperável. Hoje quem prepara é a minha irmã Cristiana, e o faz muito bem. O sabor do bolo da vovó Rute está guardado na lembrança. Ela sempre foi uma cozinheira de mão cheia e, quando as netas se casaram, ela presenteou cada uma com um caderno de receitas escrito por ela. Lá tem desde como fazer um saboroso arroz com feijão e bife até receitas mais sofisticadas como vatapá e cuscuz. Posso afirmar que temos um lema na família: ‘Natal, sem o cabrito do papai e o bolo de nozes da vovó, não é Natal’. Por isso preservamos essas recordações e fazemos questão de passá-las para as próximas gerações da família. E já estamos passando”, conclui.
O fritelli da mama Lidia
Cristina Carlotto e Alessandro Saba estão à frente do Restaurante Vitorio Emanuelle II e ele, que é nascido na Itália e tem uma trajetória experiente no ramo gastronômico, relata sua memória afetiva na culinária. “La mama, sempre la mama… Eu tenho tanta recordação da minha mãe Lidia. Na cozinha, sempre fui um aprendiz da culinária, mas tenho algo que marcou a minha infância que é a receita dos fritelli. Costumávamos comê-los na época do carnaval na Itália, quando os preparativos incluem máscaras, serpentinas e confetes. As crianças organizavam toda a sala, os adultos também participavam, escolhíamos músicas brasileiras, esperávamos esse momento de festa que considerávamos tão importante quanto o Natal. Recordo-me do calor humano e do calor da lareira, acompanhados de um bom vinho para os adultos e suco de laranja para as crianças. Era uma alegria única! E, particularmente, considero uma lembrança carinhosa e bonita da minha mãe na cozinha preparando os fritelli durante horas, fritando tudo aquilo sem se fatigar. Era uma grande quantidade que todos nós comíamos durante o baile, era um doce típico daquela época! Tudo que envolve essa receita me traz boas lembranças, como o sabor dos fritelli preparados pela minha mãe, ela na cozinha, as crianças participando, os adultos festejando, sem dúvida, uma linda recordação. Segue a receita e posso garantir que fica uma delícia”, conclui.
Fritelle
- Ingredientes:
- 2 ovos
- 1 kg de farinha de sêmola
- 1 litro de leite (morno)
- 25 gramas de fermento natural
- Suco feito com duas laranjas e as cascas raladas
- ½ copo de grappa (ou pinga caso não encontre a grappa)
- 1 pitada de sal
- Açúcar cristalizado
- Óleo de milho
Em uma tigela bater os ovos e acrescentar a farinha, o sal, a casca ralada e o suco das 2 laranjas. Misture tudo muito bem. Aquecer o leite e derreter ali o fermento. Colocar o leite e a grappa bem lentamente na tigela com os outros ingredientes. Misturar energicamente, de baixo para cima, até a mistura ficar lisa e homogênea. Cobrir a massa com uma tampa e deixar fermentar até dobrar o volume. Esquentar o óleo em uma panela grande e colocar a massa em um funil de bico de no máximo 3 cm. Você também pode substituir o funil pelo saco com bico. Colocar ali a massa e ir jogando em forma de espiral, lentamente no óleo quente, partindo do centro. Deixar dourar, virar para fritar do outro lado e depois secar em uma folha de papel e colocar o açúcar cristalizado. Se você gosta de canela, pode também polvilhar um pouquinho.
Um empadão que atravessa o tempo
A professora de inglês Vivian Valente conta sobre uma receita que considera a marca registrada do pai Mauro, um excelente cozinheiro. O motivo é a recordação que esse empadão de camarão traz e que permanece como um
prato maravilhoso desde a sua infância. “Eu tenho guardada na memória a imagem do meu pai preparando essa receita quando eu ainda era criança. É uma receita de família, quem passou para ele foi o meu tio, irmão dele, e que já faleceu, mas a receita continuou na família. Quem já experimentou sabe que esse empadão de camarão é espetacular. Vai ‘massa podre’ feita com farinha e gordura vegetal, manteiga e ovos. A massa é feita à mão e o recheio feito com camarão, palmito, temperos, cebola, alho, pimenta calabresa, catupiry. Meu pai sempre foi um cozinheiro exemplar, ele gosta de reunir a família aos domingos para comer algo feito por ele. Mas esta torta ele prepara desde que eu me conheço por gente”, revela.
Vivian ainda conta que o empadão a faz lembrar-se da época em que a família tinha casa à beira-mar e todos se reuniam nas férias. “O meu pai nunca gostou de tomar sol e de ficar na praia. Já eu e a minha mãe adorávamos, então era maravilhoso quando ele chegava com o empadão numa travessa para matar a fome (risos). Meu pai, sempre tão atencioso e preocupado, nos fazia esse carinho. Como não lembrar esses detalhes preciosos? E hoje, se meus pais estiverem em qualquer lugar desse planeta, sempre que veem camarão, comentam: ‘Nossa, a Vi iria gostar do empadão com esse camarão’. Eu também, quando estou em qualquer lugar e sinto o aroma de camarão refogado, vem a imagem do meu pai preparando a massa e depois servindo aquele prato que fez e faz parte da minha vida.”
O clássico francês coq au vin
O chef Thomaz Setti, sócio-proprietário do Guanciale Restaurante, conta que a mãe, Myriam Setti, teve muita influência na profissão que hoje exerce. “Não diretamente, pois nunca me incentivou a isso. Porém, por sempre ter cozinhado muito bem e depois de algum tempo ter sido pioneira em Londrina com a Escola de Culinária, despertou em mim uma certa curiosidade, e que me levou a trabalhar nesta área. Tem algo que cozinho e que certamente me remete a ela. Trata-se da receita clássica francesa ‘coq au vin’. Diz a lenda que o prato surgiu por volta de 50 a.C., quando os gauleses estavam cercados pelo exército de Júlio César. Vercingetórix, chefe gaulês, enviou um galo de briga de presente a César, que retribuiu com um jantar feito com o próprio galo. E, por incrível que pareça, quando criança eu odiava esse prato. Lembro-me que, sempre que a minha mãe fazia, eu sentia o aroma do vinho evaporando e não gostava. Por muitos anos me recusei a experimentar! Até que, mais velho, acabei comendo, e hoje sempre que possível peço em algum restaurante, ou eu mesmo faço em casa. E sempre ligo para ela a fim de contar o que estou fazendo. Não tem como separar o prato das recordações com a minha mãe. E segue a receita para quem ainda não conhece e deve experimentar, vale muito a pena”, Thomaz finaliza.
COQ AU VIN
Ingredientes:
• 750 ml. de vinho tinto seco
• 2 cenouras fatiadas
• 2 cebolas picadas
• 3 talos salsão picados
• 6 galhos de tomilho fresco
• 2 folhas de louro
• 8 sobre coxas de frango
• 1 ½ xíc. cebolas pequenas (como as de conserva)
• 5 colheres de manteiga
• 350 gr. champignon picado
• 4 fatias de bacon picado
• 1 colher sopa óleo de milho
• 1 ½ xíc. vinho do Porto
• 2 colheres de farinha de trigo
Misture os seis primeiros ingredientes, coloque o frango e deixe repousar de um dia para o outro. Cozinhe as cebolas pequenas em água salgada por três minutos. Escorra e reserve. Derreta três colheres sopa de manteiga,
coloque essa cebola, os champignons e refogue por dez minutos. Reserve. Na mesma panela coloque o bacon e espere dourar. Escorra em papel absorvente. Limpe a panela. Escorra o frango da marinada, tempere com sal e
pimenta. Aqueça o óleo na mesma panela e frite o frango cerca de dez minutos. Coloque a marinada, e deixe ferver cerca de 1 hora e 15 minutos. Retire o frango e coe o líquido do cozimento. Volte o líquido a panela,
coloque o vinho do Porto, misture a farinha de trigo nas duas colheres de sopa de manteiga restantes e coloque no caldo. Ferva mexendo às vezes cerca de 15 minutos. Volte o frango, coloque a cebola, champignon e bacon .
Ferva para encorpar todos os sabores cerca de 10 minutos.
Fotos: Arquivo Pessoal
Grace diz
Quantas recordações deliciosas!!!
Adorei o artigo,li com agua na boca!!!
Parabéns Elisie,me fez lembrar momentos únicos em família!!!
Sandra Piazzalunga diz
Li a matéria com âgua na bôca e alegria no coração!! Que recordações cheias de amor !! Linda materia amiga!!! 👏👏👏💗
Neusa Maria diz
Que saudades do frango ao molho pardo que minha mãe fazia 😋😋
Vc , inovando e nos alegrando com suas matérias 😍👏👏👏
Silvia Helena Ribeiro Lima diz
Lembranças culinárias que aquecem o coração. Parabéns pela matéria.