Censo mostra mais de 34 mil crianças em união conjugal; psicóloga perinatal explica vulnerabilidade e adultização precoce

Novo retrato do IBGE mostra que milhares de crianças vivem uniões precoces no país. A psicóloga perinatal Rafaela Schiavo analisa como vulnerabilidade social, violência e ausência de políticas de proteção expõem a infância brasileira
O Censo 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelou que mais de 34 mil pessoas entre 10 e 14 anos vivem algum tipo de união conjugal no Brasil. O levantamento mostra ainda que, entre jovens de 10 a 19 anos, mais de 1 milhão de pessoas vivem como casadas, a maioria em uniões informais. Desse grupo de 10 a 14 anos, quase oito em cada dez (77%) são mulheres, segundo o IBGE. O instituto ressalta que os números se baseiam em autodeclarações dos moradores e não representam comprovação legal das uniões. As respostas podem refletir percepções pessoais ou erros de preenchimento.
Embora o casamento civil com menores de 16 anos seja proibido desde 2019, os números apontam para uma realidade ainda marcada pela desigualdade e pela adultização precoce de meninas em situação de vulnerabilidade social, segundo a Profª Dra. Rafaela Schiavo, psicóloga perinatal e fundadora do Instituto MaterOnline.
“As infâncias brasileiras são muito diferentes entre si. Enquanto algumas crianças vivem o brincar e o cuidado protegido, outras, desde cedo, assumem responsabilidades adultas, cuidam de irmãos, limpam a casa, fazem comida. São meninas que deixam de ser crianças porque precisam sobreviver”, analisa.
Rafaela lembra que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante o direito de brincar, estudar e ser cuidada, princípios que ainda não alcançam grande parte das crianças brasileiras. “A infância é uma fase protegida por lei, mas que na prática ainda é negada a milhões”, destaca.
Infâncias interrompidas pela vulnerabilidade social
Para Rafaela, o fenômeno reflete as condições de vida em comunidades marcadas pela escassez e pela falta de acesso a políticas públicas.
“É comum que meninas muito novas passem a desempenhar papéis de cuidadoras para que as mães possam trabalhar. Elas crescem em um ambiente em que a infância é substituída pela necessidade de sustentar o lar, o que as coloca em um processo de amadurecimento forçado”, explica.
A especialista destaca que o dado do Censo não deve ser interpretado de forma homogênea. “Não estamos falando da mesma adolescência vivida por jovens de classe média. Em regiões marcadas pela vulnerabilidade social, há meninas de 10 anos que já cuidam de irmãos e da casa desde os sete anos. Essa realidade precisa ser entendida dentro do contexto social e histórico em que está inserida”.
Uniões como fuga da violência
Em muitos casos, as uniões precoces surgem como tentativas de escapar de ambientes violentos, observa Rafaela Schiavo.
“Há meninas que sofrem abuso sexual dentro de casa e veem em uma relação com um homem mais velho uma saída possível. Não é uma escolha consciente, é uma forma de buscar menos dor, ainda que isso também representa outro tipo de violência”, diz.
Segundo ela, a cognição de uma criança de 10 a 14 anos ainda não está desenvolvida o suficiente para decisões dessa natureza. “Antes dos 15 anos, o cérebro ainda está em formação. Falta maturidade cognitiva e emocional para avaliar riscos, prever consequências e fazer escolhas complexas. Essas meninas não decidem, elas reagem ao contexto em que vivem”, complementa.
A psicóloga explica que, ao sair de um lar violento para viver uma união precoce, muitas meninas continuam expostas a novas formas de violência. “Muitas deixam a escola, engravidam e tornam-se as principais responsáveis pela casa e pelo filho. Quando o relacionamento termina, ficam ainda mais vulneráveis, sem rede de apoio, sem renda e sem estudo. É a repetição de um ciclo de exclusão que atinge gerações”.
Educação parental e políticas de prevenção
Rafaela defende que romper esse ciclo exige políticas públicas voltadas à parentalidade e ao fortalecimento familiar.
“Essas uniões geralmente acontecem em lares afetados por múltiplas violências, uso de drogas, desemprego, negligência, abuso. Intervir apenas na consequência é ineficaz. Precisamos de programas estruturados de educação parental, que ensinem boas práticas de cuidado e ajudem os pais a desenvolver competências socioemocionais para criar seus filhos”, afirma.
A psicóloga explica que iniciativas desse tipo deveriam rastrear famílias em situação de risco e oferecer acompanhamento contínuo. “Projetos que avaliam o perfil parental, orientam mudanças de comportamento e mostram como isso reflete em um futuro melhor para os filhos são o caminho para quebrar o ciclo da vulnerabilidade social”.
Ela cita experiências isoladas de universidades e organizações sociais que já promovem esse tipo de ação, mas reforça que o país ainda precisa avançar. “O Brasil tem caminhado em temas da perinatalidade, mas precisamos evoluir também na parentalidade. Entender que cuidar dos pais é uma forma de proteger as crianças. Isso é investir no futuro”.
Sobre Rafaela Schiavo

Profª-Dra. Rafaela de Almeida Schiavo é psicóloga perinatal e fundadora do Instituto MaterOnline. Desde sua formação inicial, dedica-se à saúde mental materna, sendo autora de centenas de trabalhos científicos com o objetivo de reduzir as elevadas taxas de alterações emocionais maternas no Brasil.
Possui graduação em Licenciatura Plena em Psicologia e em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Além disso, concluiu seu mestrado em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem e doutorado em Saúde Coletiva pela mesma instituição. Realizou seu pós-doutorado na UNESP/Bauru, integrando o Programa de Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Desenvolvimento Humano, atuando principalmente nos seguintes temas: Desenvolvimento pré-natal e na primeira infância; Psicologia Perinatal e da Parentalidade.
Texto divulgação


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