Leveza debochada e crítica social dividem espaço nos textos curtos do paulista Eduardo Leite
Não se deixe enganar pela aparente leveza das mais de 50 crônicas do livro Nacos, do paulista Eduardo Leite. O conjunto, apesar de atravessado por um humor corrosivo, mostra todo o ridículo de uma sociedade já governada pelo Imbrochável e pratica mergulhos introspectivos – o autor, afinal, tem o WhatsApp de nomes como Kierkegaard, Freud, Lacan e Jung. Se você está pronto para encarar a podridão humana, embarque nessa Travessia.

“Decidi reunir as bobagens que escrevo nas redes e montar um livreco”, explica Leite, que escolheu praticar a medicina somente por prazer; se quisesse, afinal, pagaria as contas com literatura. Todo mundo sabe que, especialmente no Brasil, é uma atividade extremamente rentável.
“As qualidades podem ser questionáveis, como são as minhas”, pontua a respeito da obra. “O livro será meu, então não é para se esperar nada de grandioso. Não mudará minha vida, nem a de quem ler. Espero algo medíocre. Uma pena. Gostaria de deixar coisa melhor.”
“Um mundo mais decente já seria um bom início”, continua. “Mas qual será meu legado? Um planeta destruído pelo consumo obsessivo, uma desigualdade socioeconômica enxadrística, guerras injustas (sim, há guerras justas), ódio racial e religioso, ganância atabalhoada, gases estufa e individualismo. Não vou me estender muito, pois posso colapsar antes de concluir a escrita.”
Trechos
Cinco de maio de dois mil e vinte
Eu não tenho direito à quarentena. Não sei se todos sabem, mas além dos direitos autorais do meu romance A anatomia das borboletas, tenho outra fonte de renda que se chama medicina. Não que eu precise exercer essa segunda profissão. Só a exerço porque preciso pagar aluguel, água, luz, comida, bebida, cigarro, escola, gasolina, pedágio e remédios. Não fossem esses gastos supérfluos, viveria apenas do que escrevo no Facebook e da renda do meu livro mais vendido.
Questão de talento
Primeira aula: como tragar um cigarro. Parece simples, mas é complicado para um iniciante na arte do tabaco. Antes, claro, devemos acender o bastão cancerígeno. Se for com palito de fósforo, há de se esperar cinco segundos depois de aceso antes de levar a chama ao cigarro. Caso contrário, o gosto de pólvora ficará impregnado no fumo. Com isqueiros não precisa desse cuidado. Evita-se os isqueiros a fluido, pois sempre ficará a impressão gustativa de que seu cigarro está batizado com gasolina.
Rugas
Um brilho no escuro. É preciso uma lamparina na mão e uma coragem na alma. Olhar nossa podridão pode ser nauseante, mas há um momento em que todos temos de olhá-la.
Todos os nossos demônios reclusos e acorrentados estão à espreita de um vacilo. Dentes afiados para nos morder. Eles se escondem em nossas jaulas subterrâneas, compartimentos secretos, grutas desconhecidas.
O autor
Eduardo Leite nasceu em 1976, no interior de São Paulo. Em 2019, teve sua primeira publicação, o romance A anatomia das borboletas. Dois anos depois, veio o livro de contos Um guia para a escuridão. Anestesista e pós-graduando em Psicologia Analítica, segue escrevendo entre os espaços concedidos pelas seringas, leituras e agulhas.
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